UNFORGETTABLE de MARIA CECILIA DE SÃO THIAGO
por Juan Esteves

O pictorialismo originalmente surgiu do embate para estabelecer que a imagem fotográfica não é apenas uma ferramenta útil para a descrição funcional, quando pensamos em sua utilidade para uma projeção visual determinada, diz o historiador da fotografia e crítico americano Allan Douglass Coleman, especialista nas novas tecnologias digitais. Isto é, como um veículo para o que estamos nos referindo hoje, como verdade e documentação. "Mas como um meio criativo que foi acessível à marca da mão e da mente, como um veículo adequado para o que, falando de forma ampla, podemos chamar de preocupações poéticas." diz ele.

Unforgettable (Editora Ateliê Oriente, 2021) da paulistana Maria Cecilia de São Thiago, design gráfica e artista que utiliza a fotografia, tem como inspiração para seu título o álbum Unforgettable with love, da cantora america Natalie Cole (1950-2015), gravado em 1991. A música principal, homônima ao nome do livro, composta pelo novaiorquino Irving Gordon (1915-1996), em 1951, foi gravada neste ano originalmente pelo seu pai Nat King Cole (1919-1965). A cantora com ajuda tecnológica faz um dueto com as gravações originais dele. De certo modo o mesmo que a artista faz com negativos de vidros estereoscópicos deixados pelo seu pai, produzidos entre 1929 e 1944, ao criar uma "nova versão" com outras imagens incorporadas, como sua voz.

A fotografia estereoscópica é uma técnica surgida em meados do século XIX. Descrita originalmente pelo físico inglês Sir Charles Wheatstone (1802-1875) e aprimorada em 1849 pelo inventor escocês Sir David Brewster (1781-1868) para criar ou dar a ilusão de profundidade de uma imagem por meio da "estereopsia", a capacidade de julgamento, por um observador, das distâncias que os separam de diferentes objetos, ou seja a profundidade com que se situam no campo visual, resultado da disparidade de duas imagens idênticas, que são percebidas binacularmente.

Embora, a autora faça uso de frames únicos, a ideia da duplicidade, como na gravação da música, está implícita no seu conceito artístico e metaforicamente quando ela intervém com suas próprias imagens ou fotografias apropriadas, resultando em uma espécie de alegoria ancorada na saudade de um ente querido, neste caso, seu pai e de um tempo em que ela desejaria ter vivido. Diz ela: “Faço uma releitura dessas imagens, criando um vai e vem entre tempos e espaços com o intuito de criar uma possibilidade de materialização da saudade que sinto, do tempo que não vivi.” Seu desejo é contar histórias que ampliam-se para sua família, incluindo a memória dos seus irmãos mais velhos. As fotografias no livro são de seus quatro irmãos, nascidos do primeiro casamento do seu pai, Mario de São Thiago (1904-1977), dentista.

Não é de hoje que a produção contemporânea vem estabelecendo a possibilidade das transcrições temporais, sustentadas pelo posicionamento artístico. Assim, vemos belos e intrigantes trabalhos como Paysages ( Fotô Editorial+ La Conserverie, França 2017) da artista paulista Elaine Pessoa https://blogdojuanesteves.tumblr.com/.../conceitual... ] Betty e Eu (Ed.Austral,2020) da gaúcha Eliane Heuser [https://blogdojuanesteves.tumblr.com/.../betty-e-eu... ] bem como Sobretempo (Olhavê, 2017) da artista paulista Mariana Tassinari, que discutem as questões ontológicas tendo como fio condutor a família e a passagem do tempo.

Maria Cecilia de São Thiago, desenvolve um trabalho profundo com técnicas da chamada "mobile photography". Para compor suas parábolas ela utiliza o aplicativo Picsart, de onde também retira algumas imagens para suas criações trabalhadas em um IPad. Sua dedicação à tecnologia já lhe rendeu alguns prêmios nos concursos promovidos através da Internet, principalmente em redes sociais como o Instagram. É co-editora do site TheAppWhisperer.com: , criado em 2009 e que segundo seus editores é o site mais popular do mundo da mobile photography e art website.

Pelo longuíssimo percurso da humanidade, as pessoas vêm contando histórias. Da música e arte à poesia e literatura , uma profusão imensa de mídias foram utilizadas até no nosso século XXI. Neste caminho, um dos instrumentos mais eficazes para revelar uma narrativa ou um conceito é uma alegoria. A palavra, de origem latina allegoria, que significa "linguagem velada". Através dela transmitimos ideias complexas como vida e morte, amor e ódio, por meio de símbolos e metáforas. Uma sugestão para que o observador descubra seus significados ali embutidos, mas não diretamente, para que o obrigue a interagir com a proposta do artista.

Pensemos na arte figurativa, onde temas alegóricos foram frequentemente trabalhados desde a Renascença até meados do século XIX. Muitos permanecem ocultos até mesmo hoje, em parte porque as figuras alegóricas necessitam de uma espécie de leitor modelo como pensava o semiólogo italiano Umberto Eco (1932-2016), ou seja dependem de o espectador ser capaz de compreendê-las, tendo um conhecimento maior para poder identificar as ideias do artista não aparentes e também porque podem ser subjetivos, o que faz com que seus significados evoquem interpretações infinitas.

Em Unforgettable, felizmente, a autora não problematiza suas imagens, pelo contrário, estas encontram-se no campo mais digestivo da compreensão por sua simplicidade. Desde o início - a partir do título- estamos entrando no campo de sua intimidade familiar, no espaço de sua memória afetiva, suas afinidades eletivas, que estendem-se pelo tempo químico dos negativos às complexas operações de aplicativos contemporâneos. O que importa aqui é sua poética e imagética, a nos transportar pela sua imaginação, ainda que o recurso seja uma história particular que só interesse a poucos que compartilhem de sua intimidade, a sua leitura pode surpreender o leitor pelo lado lírico e gráfico.

Pensemos então nas aulas do escritor russo Vladimir Nabokov (1899-1977), quando ele aborda certas ideias utilizando a obra máxima do francês Marcel Proust (1871-1922), À la recherche du temps perdu, escrita de 1906 a 1922 e publicada de 1913 a 1927: O fluxo do tempo tem a ver com a evolução constante da personalidade em termos de duração. "as riquezas insuspeitadas de nossa mente subliminar que só podemos recuperar mediante um ato de intuição, de recordação, de associações involuntárias; mas também por meio da subordinação da mera razão ao gênio da inspiração interna e da consideração da arte como única realidade do mundo." Precisamos lembrar aqui que o escritor havia estudado seu conterrâneo, o filósofo Henri Bergson (1859-1941), autor de Matière et Mémoire (Presses niversitaires de France -PUF, 1965).

A artista diz que desde pequena é fascinada pelos álbuns fotográficos de família. Os seus, no melhor estilo, foram feitos pelo fotógrafo alemão Peter Scheier (1908-1979). [ Leia aqui review sobre Arquivo Peter Scheier (IMS, 2020) em https://blogdojuanesteves.tumblr.com/.../arquivo-peter...]. Para ela, "Voltar no tempo, imaginar como eram as coisas naquela época olhando fotografias antigas, me transportava para outra realidade. E há muito tempo descobri que essa era, de certo modo, uma maneira de acalmar a saudade, agora já não de um tempo que não vivi, mas daquele pai que me ensinou tantas coisas e partiu tão cedo da minha vida."

Em 2015 Maria Cecilia de São Thiago começou a editar os negativos que herdou do pai, com o intuito, segundo ela, de viajar no tempo e na memória de seus irmãos mais velhos. Mas, como tudo na vida, ao caminhar com a ideia, o trabalho foi modificando-se e ela também. Da simples trajetória das imagens de quase um século o trabalho tornou-se mais abrangente do que a tecnologia utilizada e da memória que vem carregando, aprofundando seu autoconhecimento e na questão da cura pela arte, diz ela.

Em seu fabular certas referências surgem, como os desenhos e narrativas do livro Da Terra à Lua, escrito em 1865 pelo francês Jules Verne (1828-1905). Época em que suas publicações eram recheadas de ilustrações feitas por Édouard Riou (1833-1900), Alphonse de Neuville (1835-1885) e Emile Antoine-Bayard (1837-1891), artistas populares no séculos XIX. A ideia do barquinho de brinquedo que se transforma em um grande veleiro, a metáfora recorrente da eternidade do mar, que encontramos, por exemplo, nas xilografias da artista paulista Luise Weiss para suas relações familiares. A autora lembra que o pai era um grande raconteur.

Sem abandonar a retórica, sua representação é imbuída de nostalgia. Entretanto Maria Cecilia de São Thiago cria uma atmosfera que instiga o olhar atencioso do leitor, como escreveu a genial artista carioca Renina Katz sobre o livro No Mar ( Imprensa Oficial, 2011) de Luise Weiss: "Uma disposição para o exercício de delicadas descobertas arqueológicas visuais."

Henri Bergson argumentava que o tempo dos filósofos e dos artistas, é um tempo calcado na ficção, algo que torna obscura a natureza do tempo real, o qual não pode ser separado dos acontecimentos físicos e psicológicos. Para ele, o tempo real é sucessão, mutação, continuidade, memória e criação. Cecilia de São Thiago cria seu próprio roteiro, pleno de alegorias em busca de seu tempo perdido. Melhor ainda, confirma como a tecnologia coloca à nossa disposição ferramentas para criarmos uma temporalidade à parte. Deste modo, podemos desconsiderar o transcurso real e irmos em busca da aventura eterna que é o transcurso da imaginação, encontrado aqui com arte e bom humor.

Imagens © Maria Cecilia de São Thiago Texto © Juan Esteves

Ficha técnica:

Editora Ateliê Oriente, 2021 > Imagens de Maria Cecilia de São Thiago ( negativos de vidro de Mario de São Thiago) > Edição de Paulo Marcos de Mendonça Lima ( e texto no livro) > Projeto gráfico de Alyssa Ono> Edição Bilíngue Português-Inglês >Impressão de 80 exemplares pela gráfica Ipsis em papel Furioso.

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